Geral Arquitetura sustentável “não deve ser um capricho, mas uma obrigação” Eficiência energética dos edifícios, muitas vezes "desprezada obra após obra", tem de ser o foco, diz o arquiteto Paulo Martins. 11 nov 2022 min de leitura A sustentabilidade é mais do que uma mera tendência. É um novo imperativo, também, no imobiliário, uma vez que a construção civil é dos setores que mais gera impactos ambientais, devido ao elevado consumo de energia, de recursos naturais e geração de resíduos. E numa altura em que se discute o aumento dos custos de contexto, à boleia da guerra, alta inflação e crise energética - a par das alterações climáticas - nunca tanto se falou na importância da arquitetura sustentável para o futuro. Para o arquiteto Paulo Martins, esta “não deve ser um capricho, mas uma obrigação”. E explica porquê nesta entrevista a idealista/news. Segundo o responsável e fundador do atelier Paulo Martins Arquitectura & Design - que recentemente foi distinguido com uma menção honrosa na categoria ”Special Mention, pelo projeto da Casa Beira Mar em Aveiro – Restoring Residential’’, nos World Architecture Award (WATA) 2022 - uma arquitetura sustentável é uma “arquitetura que deve ter preocupações ambientais e energéticas, não apenas na utilização do edifício mas também na sua construção”. E deve ser vista, sim, como uma “obrigação” de contribuir para um planeta mais saudável. “A palavra sustentabilidade nunca foi muito valorizada até momentos recentes, em que por várias circunstâncias fomos obrigados a encará-la como uma necessidade e não um capricho, vulgarmente associado à falta de beleza e a um aumento injustificado dos custos de obra”, refere Paulo Martins. O arquiteto admite que existem vários aspetos, nomeadamente a pressão imobiliária, aliada às transformações tecnológicas, que promovem “um ritmo desenfreado nos profissionais, que facilmente os transporta para soluções frágeis, de pouco valor, respostas standardizadas independentemente do local e das suas condicionantes”. “Isto leva-nos a uma consideração quase geral de que o normal são projetos de baixa qualidade, sendo os projetos de qualidade restritos às altas classes sociais e económicas. Este pensamento quase coletivo, e muitas vezes alimentado pelos próprios arquitetos, é absolutamente errado. É uma falsa teoria”, defende. Paulo Martins explica que o seu atelier dedica parte da sua força ao segmento residencial, nomeadamente “moradias isoladas de luxo”, uma vez que o luxo, para si, sempre esteve “intimamente ligado à exposição solar, qualidade do ar, climatização e design”. “É com estas preocupações em mente que desenhamos os espaços para as pessoas viverem com qualidade e é com estas preocupações que as pessoas deveriam procurar as soluções para as suas moradias de sonho”, diz, explicando nesta entrevista escrita que agora reproduzimos na íntegra a importância destes desafios para a arquitetura neste novo contexto macroeconómico. Moradia Costa Nova/ Paulo Martins Arquitectura & Design Em que ano fundou o atelier? Que balanço faz destes anos? Quais foram os principais desafios, dificuldades e vitórias? O atelier foi fundado em 2010, em plena crise económica, após o regresso de uma prolífica experiência em Barcelona. Vir de uma cidade como Barcelona, onde estava a projetar edifícios de grande escala e complexidade, a um ritmo bastante acelerado, e abrir o atelier num período de crise foi uma experiência tão dificil como desafiante. Ser arquiteto não é fácil, em Portugal é ainda mais difícil, e não tendo qualquer background na área que ajudasse a suportar o início do escritório obrigou-me a aceitar muitos projetos que à partida poderiam nem ser muito interessantes mas que, afinal, se revelaram bastante desafiantes e uma grande aprendizagem. Foi com um dos meus projetos mais pequenos, a SH House, que acabei por chegar a finalista do prémio Building of the Year, promovido pelo Archdaily, o que me ajudou a ganhar algum espaço e a aparecer na lista de arquitetos a contactar quando o assunto era a remodelação de pequenas casas de campo. Remodelar casas de campo não era nem é o meu objetivo principal, quando se trata de arquitetura, contudo, isso permitiu-me começar a expandir o meu portfolio de projetos e atualmente o escritório já é consultado inúmeras vezes para fazer projetos de grande escala, sejam eles de que tipo forem. Passados 12 anos desde que o escritório foi fundado, e olhando para o percurso e para as limitações que o acompanham, só posso estar grato por ter evoluído de um escritório com um arquiteto, que apenas fazia pequenas reformas em Portugal, para um escritório com 11 arquitetos, designers e engenheiros, que projeta edifícios com 40.000 m2 e é convidado para fazer projetos no estrangeiro. Propõem uma “arquitetura sustentável e hedonista, desprendida de preconceitos e estereótipos”. O que é que isto quer dizer? A palavra sustentabilidade nunca foi muito valorizada até momentos recentes, em que por várias circunstâncias fomos obrigados a encará-la como uma necessidade e não um capricho vulgarmente associado à falta de beleza e a um aumento injustificado dos custos de obra. Foi após uma pós graduação sobre ecoeficiência que fiz na Elisava, que tive a possibilidade de estudar e visitar edifícios onde o mote era a sustentabilidade, e foi também aí que um novo mundo se abriu, um mundo repleto de soluções ecoeficientes que não só melhoram o desempenho energético do edifício como também contribuem para uma nova abordagem estética ao mesmo, a qual não é implicitamente má, mas sim agradável, envolvente e desafiante, onde é possível criar, respeitar, inovar sem nunca abrir mão da beleza, da própria arte que a arquitetura convida a ser. A palavra sustentabilidade nunca foi muito valorizada até momentos recentes, em que por várias circunstâncias fomos obrigados a encará-la como uma necessidade e não um capricho Em termos práticos isto quer dizer que com o meu trabalho gosto de pensar como posso tornar um edifício mais ecoeficiente e sustentável, aumentando, claro, a qualidade de vida dos seus utilizadores sem que isso implique um desprezo por qualquer outra função do mesmo, seja ela tangível ou não. Moradia Águeda/ CGI de Aleksandra Shevchenko Ainda há muitos estereótipos e preconceitos na arquitetura? Quais são? Portugal é berço de arquitetos que fazem um excelente trabalho. Deixa-me animado que esta arquitetura de qualidade com assinatura portuguesa não esteja concentrada apenas num pequeno nicho de profissionais, mas sim num espetro alargado de arquitetos. Mas, claro, existem fragilidades, a pressão imobiliária, aliada às transformações tecnológicas, criou e tem vindo a criar uma pressão enorme, promovendo um ritmo desenfreado nos profissionais, que facilmente os transporta para soluções frágeis, de pouco valor, respostas standarizadas independentemente do local e das suas condicionantes. Isto leva-nos a uma consideração quase geral de que o normal são projetos de baixa qualidade, sendo os projetos de qualidade restritos às altas classes sociais e económicas. Este pensamento quase coletivo, e muitas vezes alimentado pelos próprios arquitetos, é absolutamente errado. É uma falsa teoria. Dizem encarar a arquitetura como um “veículo responsável pelo bem-estar e equilíbrio social, político e económico”. Como é que a arquitetura pode colocar-se ao serviço destas diferentes esferas? Acredito no poder da arquitetura e na sua capacidade transformativa, transversal às esferas políticas, sociais e económicas, até porque umas não existem sem as outras. O exercício de arquitetura, sendo o reflexo e uma resposta às necessidade de uma sociedade num determinado período, deve manter-se conectado às suas funções primordiais que se traduzem na criação de um ambiente construído que proporcione elevados padrões de conforto e segurança, sem se demitir das mesmas em benefício de lobbies e agendas das mais variadas índoles, o que infelizmente vamos observando com mais frequência do que alguma vez seria desejado. Moradia Madalena/ Ivo Tavares Studio O que faz falta, por exemplo, no espaço público? É notório crescimento de atenção ao espaço público em Portugal, cada vez mais as autarquias estão atentas e preocupadas em criar infraestruturas cicláveis, ainda que muitas delas não passem de ridículas intenções, e preocupadas também em criar espaços verdes devidamente infraestruturados. Parece-me, no entanto, que continua a faltar um pensamento a montante do problemas, com os espaços públicos a serem pensados na fase de planeamento urbano e não como soluções de colmatação de espaços residuais e sem capacidade construtiva, tais respostas efémeras a problemas permanentes. Continua a faltar um pensamento a montante do problemas, com os espaços públicos a serem pensados na fase de planeamento urbano A que tipos de projetos se dedica o vosso atelier? Estamos atualmente a desenvolver projetos na área residencial, uni e plurifamiliar, hotelaria e restauração e projetos industriais. E de que forma é que os vossos projetos refletem a preocupação com a sustentabilidade? Gostaria de destacar algum(ns) exemplo(s)? Começamos desde logo por fazer um estudo aprofundado do local, das cartas solares e dos ventos dominantes, com a ajuda de software dedicado. Depois de conhecermos o terreno dedicamos-nos a estudar a melhor implantação de forma a conseguir tirar o maior partido dos sistemas passivos, que nos acompanham em toda a fase do projeto (proteção aos vidros, ventilação cruzada, etc…). Recentemente concluímos uma moradia de 600 m2 construída em CLT (cross laminated timber), e temos uma grande quantidade de projetos a serem estudados com o mesmo sistema construtivo. Moradias Aveiro/ Paulo Martins Arquitectura & Design O que caracteriza um projeto de arquitetura sustentável? O desenvolvimento do projeto e a construção são mais caros? E o mercado reconhece esse valor? Uma arquitetura sustentável é uma arquitetura que deve ter preocupações ambientais e energéticas, não apenas na utilização do edifício mas também na sua construção. Não me parece que uma arquitetura sustentável deva ser um capricho, mas sim uma obrigação, a obrigação de contribuir para um planeta mais saudável, com recurso a energias renováveis, com práticas que contribuam para a redução da pegada ecológica, com materiais reciclados e recicláveis. Além de todas as vantagens ambientais, estou certo de que as soluções locais contribuiríam para a recuperação e valorização da identidade dos lugares, reocupando o espaço que deu lugar à internacionalização da arquitetura. Não me parece que uma arquitetura sustentável deva ser um capricho, mas sim uma obrigação, a obrigação de contribuir para um planeta mais saudável Como vê o fenómeno das casas pré-fabricadas? Há espaço para projetos de qualidade neste tipo de construção? Estamos a terminar um projeto de casas pré-fabricadas que irá para o mercado durante o ano de 2023. Com a crescente falta de mão de obra qualificada parece-me natural que a construção esteja a sofrer uma mudança de paradigma, recorrendo-se a soluções de pré-fabricação que, sendo estes processos de fabrico realizados em fábrica, com mais condições técnicas à disposição e com um maior controlo de qualidade, associado a uma diminuição de custos. Afigura-se, até, como um aumento de qualidade das construções. Os projetos de qualidade estarão dependentes da qualidade e ambição dos projetistas bem como do nível de exigência dos clientes. No segmento residencial, que tendências identificam atualmente? O que é que se procura numa casa? Quais são as principais preocupações? A pandemia, através dos isolamentos e do tempo passado em casa, assim como o trabalho a partir de casa, veio denunciar a óbvia falta de qualidade dos espaço habitáveis. Entre várias coisas, isto traduz-se na falta do contacto com o exterior, através de varandas, por exemplo, o evidente pouco contacto com vegetação, a fraca qualidade do ar interior ou uma exposição solar claramente deficiente, entre outros problemas. Se por um lado é indiscutível os efeitos devastadores provocados pela pandemia, por outro lado estas preocupações vieram exigir mais qualidade aos projetos. Casa Lígia/ Paulo Martins Arquitectura & Design Este atelier dedica grande parte da sua força ao segmento residencial, nomeadamente, moradias isoladas de luxo, sendo que o luxo sempre esteve, para nós, intimamente ligado à exposição solar, qualidade do ar, climatização e design, sempre através de um pensamento biofílico. É com estas preocupações em mente que desenhamos os espaços para as pessoas viverem com qualidade e é com estas preocupações que as pessoas deveriam procurar as soluções para as suas moradias de sonho. Recentemente, receberam mais uma distinção com o projeto Beira Mar House. Pode falar- nos um pouco este projeto? O projeto Beira Mar House foi pensado e projetado como habitação permanente para um arquiteto. O lote tem pouco mais de 2,5 m de largura e uma profundidade de 30 m, o que desde logo suscitou várias dúvidas quanto à qualidade espacial que iria conseguir no seu interior. Esta enorme dificuldade foi o grande desafio do projeto e também a grande motivação, aliado ao facto de que iria aproveitar a oportunidade para testar um sem fim de soluções que, com outro cliente, não iria ter permissividade para o fazer. A casa divide-se em 2 pisos, sendo o piso inferior dedicado às vivências sociais e o piso superior às zonas íntimas. Toda a zona tardoz da casa ficou aberta, como pátio e solário, delimitados por espaços dominados por vegetação. O interior da casa é banhado por uma tonalidade monocromática escura, para promover um estado de relaxamento, enquanto que, por contraste, o exterior quis-se branco proporcionando uma maior refletividade e frescura. Beira Mar House/Ivo Tavares Studio Por fim, que que desafios enfrenta a arquitetura neste novo contexto macroeconómico? Com a guerra, subida da inflação, dos preços… Não tenho dúvidas de que a arquitetura se reinventará de forma a dar novas soluções, como já estamos a assistir presentemente através da pré-fabricação, por exemplo. Gostaria que o foco não estivesse somente na subida de preços das matérias primas, mas também nos ganhos desproporcionais de muitos promotores imobiliários que, como já tive a oportunidade de assistir, consideram inaceitável promover empreendimentos com taxas de retorno inferiores a 40%, sem que a qualidade acompanhe este nível de exigência. Não tenho dúvidas de que a arquitetura se reinventará de forma a dar novas soluções, como já estamos a assistir presentemente através da pré-fabricação, por exemplo. Certo de que encontraremos uma forma de equilibrar a subida de preços, de matérias primas e valores de mercado do imobiliário, acho que nos devemos concentrar em oferecer soluções ecoeficientes, de forma transversal, desde a conceção até ao período de fim de vida do edifício. Acredito que a maior preocupação deve centrar-se nos materiais que usamos, nas suas emissões, na verdadeira eficiência energética dos edifícios, na sua reciclabilidade e na sua pegada ecológica, que são problemas gravíssimos que, infelizmente, têm vindo a ser desprezados obra após obra. De que forma está a impactar a vossa atividade? Felizmente temos conseguido contornar o problema, sendo certo que vários projetos foram e estão a ser revistos de forma a controlar os custos de construção. Estamos gratos porque, apesar das dificuldades, o escritório está em crescimento e com um aumento significativo de volume de trabalho. Fonte: Idealista Geral Partilhar artigo FacebookXPinterestWhatsAppCopiar link Link copiado